“Temos que entender essa herança escravagista, essa história que afeta a todos nós”
Com essa frase, as líderes do Comitê de Igualdade Racial, Elizabete Scheibmayr e Kaká Rodrigues sensibilizaram já de início as integrantes dos diversos Núcleos do Grupo Mulheres do Brasil, que vieram de diversos pontos do país, para debater ideias, conhecimentos e ações sobre racismo, no Plugar Igualdade Racial, dia 24 de outubro, em São Paulo.
“É importante falar do panorama histórico que gerou uma desigualdade racial que se perpetua até hoje e justifica a implantação de políticas afirmativas. O racismo é institucional e estruturante advindo de um sistema fomentado por leis e instituições”, observa Elizabete.
O panorama histórico apresentado, segundo as líderes, é para lembrar de onde vem a raiz da desigualdade. “São dados importantes para conhecermos a história do nosso país para entendermos essa herança escravagista que fez da nossa sociedade uma sociedade tão injusta e, assim, termos o poder de mudar isso”, enfatiza Elizabete.
Panorama histórico da desigualdade
– O Brasil foi o país que mais recebeu escravos nas Américas – Quatro em cada dez negros que cruzaram o Atlântico, até a segunda metade do século 19, tiveram como destino o Brasil – um total de R$ 4.8 milhões.
– O Haiti tomou a dianteira dos movimentos pela liberdade, em 1793, seguido pela Inglaterra. O Brasil foi o último a libertar os escravizados, em 1888.
Porém, antes de falar de abolição, é preciso entender um pouco o sistema legal, o que dizia a Lei. Antes da abolição, em 1837, havia a primeira Lei de Educação, pela qual os negros não podiam ir à escola – “escravos e os pretos africanos, ainda que livres ou libertos, não poderiam frequentar as escolas”, informam as líderes.
Em 1850, foi instituída a Lei das Terras, segundo a qual os negros não podiam ser proprietários de terras – “isso foi bem recente, 38 anos antes da abolição”, ressaltam as líderes. “Aí, em 1871, tivemos a Lei do Ventre Livre. Ventre livre pra quem? De que adianta o filho ser livre se a mãe é escrava? Meu filho nasceu livre e eu digo: vai filho, ser livre, enquanto sua mãe está aqui escrava”, ironiza Elizabete Scheibmayr.
Em 1885, vem a Lei do Sexagenário, ou seja, quem sobrevivesse até os 60 anos estaria livre, como um prêmio. “E além do mais, quando o escravo chegasse a essa idade, teria que trabalhar por mais 3 anos de forma gratuita, lembrando que a expectativa de vida na época era de apenas 38 anos”, enfatizam as líderes.
Em 1888 ocorre finalmente a abolição, mas ela não chegou de forma gratuita, e sim foi resultado de toda a luta que já conhecemos – dos movimentos negros e dos quilombos.
Em 1890, foi baixada a Lei dos Vadios e Capoeiras, segundo a qual, os que perambulavam pelas ruas sem trabalho ou residência comprovada iriam para a cadeia. Os escravos eram mesmo livres? Dá para imaginar qual era a cor da população carcerária daquela época? E a cor predominante nos presídios hoje?
Em 1968, havia a Lei do Boi – a primeira lei de cotas, em que estabelecimento de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidas pela União, reservariam anualmente 50% de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos, se residissem na zona rural, e 30% se residissem em cidades ou vilas. Essa lei foi revogada em 1985. “Hoje as pessoas ainda questionam cotas para as minorias, que bobagem, todo mundo é igual”, provoca Elizabete, informando que há muito médico veterinário que hoje é contra o sistema de cotas, mas que estudou com base em uma lei de cotas.
Em 1988 vem a Constituição atual, que assegura que todos são iguais perante a lei, a nossa carta magna; em 2001, acontece a Conferência de Durban, que determina políticas de reparação e ação afirmativa; em 2003, a Lei 10.639 que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas redes públicas e privadas de educação; em 2010 é criado o Estatuto da Igualdade Racial, e, em 2012 a Lei de Cotas.
Segundo o Censo do IBGE de 2018, os negros representam 55,8% da população brasileira composta pelos brasileiros autodeclarados pretos e pardos. Em sete anos, aumentou em 32% a população que se declara negra no Brasil. “Os motivos provavelmente são as políticas afirmativas, as pessoas têm orgulho das suas histórias, querem ser vistas e reconhecidas como negras. É uma mudança cultural muito importante, porque essa é a história do Brasil”, diz Elizabete.
Representatividade na política
Em 2016, o percentual de mulheres negras concorrendo ao cargo de vereadora era de apenas 14,2%. Enquanto que, para o de prefeita, o número cai para 0,13%. Já em 2018, houve um crescimento de 50% de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados, sendo 77 deputadas federais, 26 a mais do que em 2014. Aumentou o número de negras – de 10 para 13 –, e de brancas – 41 para 63 – e Roraima elegeu a primeira mulher indígena para o Congresso Nacional. Porém, pouca ou quase nenhuma representatividade é observada em relação à mulher negra no Senado Federal, cargos executivos, governos estaduais e prefeituras.
Mercado de trabalho
Os profissionais negros com ensino superior completo recebem 28,8% menos do que recebem os brancos em igual condição (RAIS 2016/Ministério do Trabalho e Emprego).
Somente 34% dos funcionários das 500 maiores empresas são negros; apenas 4,7% do quadro executivo das 500 maiores empresas é constituído por pessoas negras. As mulheres negras representam somente 0,4% dos executivos nas 500 maiores empresas (Ethos, 2016).
Renda
A remuneração da profissional negra é 59% menor em relação ao que recebe um homem branco. (PNAD 2017). Os brancos possuíam renda quase duas vezes superior à da população negra, em 2017 (Ipea, 2018). Estima-se que a renda entre os negros e brancos será equivalente somente em 2089 (Oxfam, 2017).
Formação escolar
Quase metade dos homens negros, de 19 a 24 anos, não concluíram o ensino médio, diz o IBGE. Entre as mulheres negras, o índice de evasão escolar chega a ser de 33%. Para especialistas, o abandono escolar tem raízes sociais.
Violência contra a mulher negra
As mulheres negras são 60% das vítimas da mortalidade materna no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Ainda de acordo com o órgão, nos pós-partos, apenas 27% das mulheres negras são acompanhadas pelo médico, enquanto para as mulheres brancas essa taxa aumenta para 46,2%.
De acordo com dados do Ipea/Relatório Atlas da Violência, 2019, 75% das mortes violentas intencionais foram de indivíduos negros. O estudo aponta aumento de 20,7% na taxa nacional de homicídios femininos, entre 2007 e 2017. Esse aumento se dá, sobretudo entre mulheres negras: elas viram seu número de homicídios crescer mais de 60% em uma década, em comparação com um crescimento de 1,7% nos assassinatos de mulheres não negras.
“Se analisarmos esse panorama histórico, veremos como a gente demorou pra tentar corrigir minimamente uma diferença histórica. Vejam o prejuízo que a população negra vem sofrendo ao longo dos anos, e as pessoas precisam entender um pouco dessa história antes de falar que não existe racismo ou que são contra cotas e que tudo não passa de mimimi”, conclui a líder Elizabete Scheibmayr.
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