* por Silvia Pereira Pelegrina
Se pensarmos bem, Amanda Oliveira tem algo em comum com as Valquírias (deidades femininas da mitologia nórdica que conduziam os guerreiros mortos em batalha ao seu paraíso, Valhala), imortalizadas na composição “Cavalgada das Valquírias”, do alemão Richard Wagner. Só que, em vez do paraíso idealizado na ópera “O Anel dos Nibelungos”, Amanda conduz meninas e meninos a novas possibilidades de vida e a versões melhores de si mesmos na realidade terrena – ideais de paraíso na Terra para muitos excluídos.
Metáforas à parte, Amanda enche de orgulho as participantes do Núcleo São José do Rio Preto do Grupo Mulheres do Brasil, do qual é líder graças a seu trabalho no Instituto As Valquírias. Ela cresceu cercada de motivos para integrar as piores estatísticas sociais brasileiras – nasceu em família pobre, dentro de uma comunidade carente, foi vítima de acidente doméstico que quase a matou e marcou seu rosto para o resto da vida, cresceu sofrendo bullying e chegou a pensar em se suicidar –, mas a história de seus 30 anos de vida é, na verdade, de muito sucesso!
Sem ter formação superior – ainda, pois faz faculdade de Administração a distância e tem curso de empreendedorismo social pela ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) – , Amanda foi incluída, no início deste ano, na lista “Under 30”, da revista Forbes, que destaca os mais brilhantes empreendedores, criadores e game-changers abaixo dos 30 anos que revolucionam os negócios e transformam o mundo.
Em maio último, ainda recebeu a notícia de que o instituto que fundou e dirige foi escolhido, entre várias entidades com trabalho voltado a mulheres, para receber doação da grife Carolina Herrera. A própria estilista e sua filha, Carolina Herrera Baez, que estiveram no Brasil para o lançamento de nova fragrância de sua marca, encontraram-se com Amanda para oficializar a doação e ainda se comprometeram a ajudar no impulsionamento de outros projetos da entidade.
E eles são muitos. Atualmente, o Instituto atende 1.139 famílias diretamente – e impacta três vezes este número indiretamente – com projetos em três frentes: a banda musical As Valquírias, o instituto social e o negócio de impacto social.
Na prática, são atendidas, basicamente, crianças e adolescentes a partir de 3 anos de idade até os 14, com cursos em diferentes áreas – cultural, profissionalizante, empreendedorismo e conscientização social -, além de suporte social e atenção em saúde. O objetivo é amenizar três dos maiores problemas da zona Norte de São José do Rio Preto: tráfico de drogas, trabalho infantil e prostituição.
O público-alvo principal do trabalho, segundo Amanda, são meninas, que já nascem em situação de vulnerabilidade dentro de comunidades carentes. “Mesmo os meninos [que representam 35% dos atendidos] recebem uma formação em prol delas, com o objetivo de desconstruir a cultura do machismo, que está na origem da violência doméstica”, explica ela. “Trabalhamos as meninas desde a infância, para forjar valor e prevenir violência e opressão”, acrescenta.
A doação de Carolina Herrera vai ajudar a ampliar um trabalho que o Instituto já presta oficiosamente, que é o de acolher meninas em situação de risco dentro das próprias famílias, dando-lhes suporte físico e psicológico. “Nós também trabalhamos para fortalecer o vínculo familiar, mas, às vezes, é preciso rompê-lo para, depois de atender essa menina, reconstruí-lo de uma forma mais saudável”, pondera Amanda.
Tão importante quanto a doação é a visibilidade que o trabalho social do instituto ganhou a partir da nominação de Amanda pela Forbes e do apoio de uma marca tão respeitada internacionalmente. Mas não foi a primeira vez que um trabalho social coordenado por ela ganhou visibilidade massiva.
Com apenas um mês de criado, o Instituto foi chamado a participar de um quadro do Programa Luciano Huck, na Rede Globo, que ajuda entidades que fazem a diferença na sociedade. É que Amanda já tinha seu trabalho reconhecido junto ao projeto social que foi responsável por transformar sua vida para melhor. Para saber mais a respeito dele, porém, é preciso conhecer antes a história de vida da própria Amanda, que pode ser dividida em “antes” e “depois” de sua entrada para o projeto social que fez diferença na vida de vários jovens da periferia de Rio Preto.
Vida que muda
Amanda contava apenas três meses de idade quando caiu com o rosto dentro de uma bacia de água fervente. A mãe havia improvisado assim uma inalação para tratar problemas respiratórios da filha, por falta de recursos de saúde próximos. O pai, que segurava Amanda, cochilou, deixando-a cair.
Socorrida a um hospital, a menina sofreu três paradas cardíacas. A dor devia ser tamanha que ela não conseguia mamar. Desidratou-se. Os médicos começaram a preparar a família para sua morte. Mas os vizinhos da favela reuniram-se em orações e cada um fez uma promessa pedindo por sua sobrevivência. No dia seguinte, ela começou a melhorar.
Amanda sobreviveu, mas cresceu sem poder tomar sol. Viveu a pior fase de sua vida frequentando a escola. Foram anos de bullying e introspecção, vontade imensa de sumir e de nunca ter nascido. “Cresci quieta. Não fazia perguntas à professora na sala de aula porque, se alguém lembrasse que eu estava ali, era ‘tiração’ de sarro na certa. Tudo isso que aconteceu em virtude da falta de acesso a saúde de qualidade, consequência da pobreza”, relata Amanda, que chegou a pegar numa faca com a intenção de arrancar a própria cicatriz.
Uma decisão de sua mãe, que sempre dizia que Deus a tinha feito diferente para que ela não fizesse tudo igual a todo mundo, mudou a vida de Amanda aos 11 anos de idade. Ela foi matriculada no projeto social Instituto Sociocultural e Esportivo Ielar. Lembra que resistiu a frequentar suas aulas, em um primeiro momento, temendo se tratar de mais uma escola onde sofreria bullying. Mas não. Foi acolhida pela professora de música Valquíria, que lhe ensinou a tocar um instrumento.
“A primeira vez que tive contato com protagonismo musical foi quando subi em um palco pra tocar um instrumento. Percebi que minha vida podia ser mais do que era até então”, lembra.
Amanda destacou-se tanto que, aos 16 anos, foi chamada para ser monitora no projeto; aos 17, para assumir aulas de música no lugar da professora Valquíria, que se mudava para a Espanha; aos 19, a coordenar o projeto todo, que, sob sua gestão, só cresceu.
Ela criou um encontro aos sábados, que consistia em aulas de música e, em seguida, rodas de conversa. Foi a psicóloga do projeto quem chamou sua atenção para o fato de que esses eventos promoviam uma espécie de “desintoxicação emocional” nas meninas com problemas familiares. “Na hora da partilha, colocavam um monte de coisas para fora. Vi que precisava aumentar o projeto para atender mais e melhor”, lembra.
Em 2013, Amanda inscreveu o Instituto no programa Criança Esperança, mantido em parceria pela ONU (Organização das Nações Unidas) e Organizações Globo, com o objetivo de pleitear verba. Conseguiu R$ 147 mil naquele ano, que possibilitou ampliar o atendimento da ONG. No ano seguinte, o instituto teve aprovada, novamente, uma verba de R$ 180 mil.
A publicidade que isso atraiu fez Amanda confrontar seus traumas de infância, que alimentavam uma fobia em chamar atenção para si. “Não queria aparecer, só aplicar os valores que aprendi com minha mãe, de fazer caridade e ajudar o outro”, comenta. Mas não tinha jeito. Só ela podia falar sobre o projeto com jornalistas, inclusive em frente a câmeras de TV, expondo suas cicatrizes de queimaduras. Buscou terapia para ajudá-la a lidar com isso. “Acabei fazendo dez anos de terapia”, conta.
A esta altura, Amanda já integrava um grupo de percussão com mais seis meninas – Ana (bateria), Vargas (teclados), Mi (saxofone), Lola (contrabaixo), Isa (vocal ) e Bia (contrabaixo e vocal) -, que deu origem à banda As Valquírias, cujo nome homenageia sua primeira professora de música.
Começaram a dar palestras-show em escolas públicas e comunidades carentes, para levar aos jovens mensagens de fortalecimento interior e de que é possível mudar o próprio destino. Empresas passaram a chamá-las para apresentações em eventos internos de motivação, empresariais e congressos.
Em 2016, um corte no repasse de verbas do SUS provocou o fechamento do Instituto Sociocultural. “Fomos fazer barulho na porta da Prefeitura por sete dias. Saiu na capa de um jornal, sob o título ‘A Revolução das Valquírias’”, lembra Amanda. Conseguiram algum apoio do Poder Público Municipal e Amanda decidiu montar nova ONG para manter o trabalho de atendimento social. Fizeram rapidamente a assembleia, formaram diretoria e fundaram o Instituto As Valquírias, com as meninas da banda como co-fundadoras.
Um mês depois as Valquírias apareciam no programa de Luciano Huck, atraindo novos parceiros e muita gente interessada em ajudar de alguma forma. Desde então, os projetos só se multiplicaram.
Agora, as meninas da banda preparam o lançamento de um clipe com letra 100% voltada para o empoderamento feminino. Mas ainda vêm muitas outras conquistas por aí.
* Por Silvia Pereira
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