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No cárcere, o poder transformador da leitura

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Beneficiadas e voluntárias do Grupo Mulheres do Brasil contam como projetos que estimulam a leitura de livros por apenados, em troca de diminuição de pena, transformou suas vidas

 

* reportagem produzida por Silvia Pereira Pelegrina

 

Mãe de um casal de universitários e duas filhas pequenas – de 10 e 2 anos de idade – Sirlene de Lima Domingues trabalha como farmacêutica e ainda arranja tempo para fazer pós-graduação em Farmácia Estética. Com dois filhos adultos e um menino de 12, graduada em Teologia e bacharel em Direito, Flávia (nome fictício) sustenta a família com a remuneração de seus estágios em escritórios de advocacia. Distribuidora de roupas vendidas pela internet, Giuliana M. F. tem um filho de 15 e vaga garantida pelo Enem em sua faculdade dos sonhos: Logística. As três têm em comum mais do que a amizade nascida em meio à mais difícil circunstância de suas vidas – o cárcere.

O passado prisional não as define, e elas não têm dúvidas de que devem isso aos novos horizontes descobertos por meio da leitura, propiciada em unidades prisionais por projetos como o Clube de Leitura e o Remição em Rede – este último desenvolvido desde 2018, em dez presídios do Estado de São Paulo, por meio de uma parceria entre o Comitê de Cultura do Grupo Mulheres do Brasil, a Fundação de Amparo ao Preso (Funap / Governo do Estado de São Paulo), a Jnana Consultoria e editoras Boitempo, Planeta, Record e Todavia. “Acho que as pessoas não têm ideia do quanto esses projetos transformam as vidas de pessoas como nós. No nosso grupo de participantes do projeto não tem uma que, depois de sair da prisão, teve vontade de voltar para o crime”, comenta Giuliana.

As 45 voluntárias do Grupo Mulheres do Brasil têm ideia sim! Aliás, este é o objetivo do Remição em Rede, segundo a CEO do Grupo, Marisa César. “O projeto traz a possibilidade de transformação por meio da leitura e de levar aos apenados uma oportunidade de aprendizado, de despertar para o conhecimento e, muitas vezes, de engajá-los a estudar e a se tornarem novos personagens de suas vidas”, explica a CEO.

Idealizado com base em recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de diminuir quatro dias de pena a cada livro lido, o projeto propõe a presos que leiam um título ao mês, sobre o qual devem apresentar uma resenha, que, se aprovada, é encaminhada ao juiz regional para concessão do benefício. A seleção dos títulos propostos, os encontros para debater seus conteúdos, bem como a avaliação e aprovação ou reprovação das resenhas são feitas por um total de 70 voluntárias – incluindo as da Funap e das editoras – sob coordenação de Janine Durand e Luciana Gerbovic, que até o início do ano lideravam o Comitê de Cultura do Grupo Mulheres do Brasil.

Em seu primeiro ciclo (concluído em agosto de 2019), o projeto atingiu 422 pessoas privadas de liberdade, emitiu um total de 1.643 pareceres e aprovou 88% das resenhas produzidas. A ideia é que o novo ciclo inclua mais dez presídios, segundo Janine, que desde 2010 trabalha implementando Clubes de Leitura em livrarias, hospitais, escolas e presídios. Em todos os casos, diz ter testemunhado o potencial transformador da leitura. “Para mim, o direito à leitura está na base dos Direitos Humanos. Além de trazer palavras para as emoções humanas, oferece releituras do mundo e um engajamento muito diferente de quando a pessoa não está apropriada do mundo e de si mesma”, diz a líder.

Para Janine, o ato de ler propicia uma maior consciência do mundo em que se está inserido, por isso abre horizontes. “O salto da transformação é você dialogar sobre esse livro em grupo. Isso amplifica o que já tinha ressoado dentro da gente. Acho que o Clube de Leitura é uma forma de transformação, de olhar para o outro com mais alteridade e compaixão”, acrescenta.

Luciana Gerbovic, que também trabalha há anos mediando clubes de leitura em abrigos, hospitais, escolas públicas, residências e bibliotecas públicas, observa que a literatura transforma qualquer pessoa porque mexe com algo que todos temos: imaginário, capacidade de sonhar e fabular. “Quando essa nossa capacidade é tocada especialmente pelo livro, que não nos dá imagens prontas, e pelo livro de literatura, que não põe limites à nossa imaginação, acontece uma identificação com aquela história e com aqueles personagens, seja para amá-los, seja para odiá-los. Eles estão vivos para nós, mexem com nossas memórias, desejos, dores e alegrias. Nós passamos a enxergar as pessoas com suas contradições e nos tornamos mais empáticos e compreensivos. Nossa humanidade é ampliada”, explica.

Impactadas pela leitura

Para a farmacêutica Sirlene, o Clube de Leitura do qual participou na prisão tem tudo a ver com o atual rumo de sua vida. Ela conta que, quando começou a cumprir pena, em 2009, pensou que sua vida havia acabado. Participar do projeto a fez acreditar que podia conseguir uma vaga em faculdade prestando o Enem. Um passo atrás de outro, conseguiu estudar, passar e, quando saiu da prisão, formou-se em Farmácia. “O projeto tem um papel muito mais importante do que simplesmente diminuir as penas, mas o de abrir os olhos das pessoas que querem realmente mudar de vida. Só quem está lá dentro sabe sua importância. É como se fosse uma luz no fim do túnel. Ele dá novas perspectivas e segundas chances. Foi fundamental para mim. Abriu minha mente e minha visão”, declara a hoje farmacêutica.

Para Giuliana, que já gostava de ler antes de ser condenada, em 2009, participar do Clube de Leitura na prisão foi como sentir que voltava a viver. “As pessoas do projeto tratavam a gente como ser humano. Isso é essencial, porque, no próprio presídio, são poucos os funcionários que nos tratam como gente. Aquele momento da roda de leitura era esperado pela gente o mês inteiro. E era muito dificultoso ter acesso a bibliotecas nas unidades prisionais”, diz ela, que foi aprovada no Enem antes de ser solta, em 2019, mas não teve permissão para iniciar o curso. Ela começa a cursar Logística neste semestre.

Flavia já estava no segundo ano de Administração quando foi condenada, em 2009. Já adorava ler. Antes de ter acesso ao Clube de Leitura, lia o que lhe caía nas mãos, aproveitando uma fresta de luz que escapava pela porta de um banheiro. “Mas a roda de leitura refinou minha experiência com a literatura. O mais interessante é que você acaba obrigada a ler algum título que jamais pegaria por livre escolha em uma biblioteca. Os encontros começaram a me despertar o senso crítico. Não era uma coisa maçante ou obrigatória. Isso foi de extrema importância na minha ressocialização. Ainda melhorou minha escrita e minha forma de me expressar verbalmente”, conta. De dentro da prisão, Flávia graduou-se à distância em Teologia. Depois, em regime semiaberto em outra unidade prisional, começou a cursar Direito. “Ao observar como os advogados e magistrados tratavam qualquer réu, prometi que atuaria em Direito Criminal para tratar os clientes com dignidade”, conta. Solta em fevereiro de 2018, Flavia formou-se em dezembro de 2019 e trabalha na área desde o início de seus estudos de Direito cumprindo sua própria promessa.

Outra visão

Não só a vida de apenados tem sido transformada por projetos como o Clube de Leitura e o Remição em Rede, como prova a integrante do Comitê de Cultura do Grupo Mônica de Carvalho Pereira. Ela já estava envolvida com um projeto anterior de Formação de Clubes de Leitura em Escolas Públicas quando aceitou trabalhar na avaliação de resenhas no Remição. “Foi quando pude perceber que tinha um instrumento de ajuda na formação dos apenados”, diz ela, que lembra de ter lido algumas resenhas incríveis de participantes do programa. “Ainda que percebamos que apenas duas, de dez, realmente leram, já vale a pena, porque constatamos que impacta a pessoa que tirou proveito da leitura”, declara.  “Todas as voluntárias, como eu, foram mudando sua visão de mundo e sobre a questão prisional”, acrescenta.

Ainda de acordo com Marisa Cesar, esse é o verdadeiro resgate do protagonismo. “Apagar o passado essas pessoas não vão, mas podem dar um novo caminho com dignidade para suas vidas”, conclui a CEO do Grupo Mulheres do Brasil.

 

Por Sílvia Pereira

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