Por Ana Paula de Morais Rochadel, Comitê de Igualdade Racial
Em 21 de março celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Porém, parece haver um conflito de ideias.
Afinal, por que celebrar algo que nos remete a uma tragédia, ao massacre de manifestantes negros que, legitimamente e de forma pacífica, protestavam pelo reconhecimento de um direito?
Vale a pena voltar um pouco na linha do tempo de nossa história para recordar os mecanismos legais de discriminação de pessoas com base na cor de sua pele, raça ou etnia. A minoria branca possuía todos os poderes decisórios do ponto de vista político, cultural, militar e econômico, impondo, sob todos os aspectos possíveis, sua superioridade em detrimento de negros, mestiços e asiáticos.
O Apartheid – provavelmente o mais notório e cruel de todos os regimes de segregação racial registrados na era contemporânea – vigorou de 1948 a 1991 na África do Sul. Chegou ao fim por diversos fatores sociais, administrativos, políticos e econômicos, mas também pela pressão de celebridades de todo o mundo e comoção pela longa prisão do líder mundial Nelson Mandela.
Durante todo esse período, o Apartheid foi um sistema legal, ou seja, o Estado tinha o poder para manter a população negra marginalizada e explorada economicamente, com praticamente nenhum direito ou liberdade individual e coletiva, tais como voto, aquisição de imóveis, livre circulação, relacionamentos interraciais e frequentar os mesmos lugares que pessoas brancas.
Com todo o respaldo jurídico, a discriminação e a marginalização eram perpetuadas, impedindo a ascensão econômica, política e social de pessoas negras. Elas eram legalmente consideradas inferiores, apesar de dados oficiais da época mostrarem que constituíam o maior grupo racial na África do Sul, sendo 75% da população. As leis do Apartheid violavam, inclusive, garantias asseguradas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Uma dessas violações era a Lei do Passe, de 1945, que determinava que os negros deveriam portar e levar para todo lugar uma espécie de caderneta de identificação com informações do local que podiam frequentar, cor, etnia e profissão. Quem fosse flagrado sem o documento poderia ser preso pelas autoridades policiais sul-africanas.
Diante da impossibilidade de circular livremente, era natural que alguma forma de reivindicação fosse organizada pela população afetada. Assim, no dia 21 de março de 1960, no bairro de Sharpeville, em Joanesburgo, um grupo de 20 mil pessoas reuniu-se para, pacificamente, manifestar sua irresignação pelo tratamento desigual. Por orientação dos organizadores do protesto, os manifestantes não levaram sua caderneta de identificação.
Apesar de ser uma marcha pacífica, o inesperado aconteceu: os policias abriram fogo contra os manifestantes, matando 69 pessoas e ferindo outras 189, no episódio que ficou conhecido como o Massacre de Sharpeville.
Para marcar este lamentável episódio, a Organização das Nações Unidas instituiu que 21 de março seria o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, começando já no ano seguinte.
O motivo de resgatar esta tragédia está relacionado à relevância da luta incessante pelo reconhecimento de isonomia de direitos civis para a população negra em todo o mundo, mas não só isto, o que já seria o bastante por si só.
Além de não nos esquecermos das dificuldades enfrentadas pelos negros, também temos que assumir o firme compromisso de não praticar atos discriminatórios pela cor, religião, etnia, fenótipo e raça e, ao mesmo tempo, reconhecer privilégios que têm sido reservados para determinado grupo racial praticamente em caráter exclusivo.
O Massacre de Sharpeville é um exemplo dos malefícios que o racismo – um sistema engendrado para proporcionar que um grupo sempre prevaleça sobre outros – pode causar à sociedade como um todo.
Então, que tal celebrarmos neste dia o compromisso de abrir a mente para um diálogo honesto sobre racismo, privilégios, violência, igualdade, diversidade, tolerância, representatividade e direitos civis?
Não custa lembrar que negros e pardos representam mais da metade da população no Brasil e que, ainda assim, há um longo caminho a ser percorrido para eliminar as gravíssimas desigualdades se comparadas com os índices relacionados à população branca.
As tragédias que marcaram a nossa história podem e devem ser ressignificadas para que possamos escrever novos e promissores capítulos para as gerações futuras usufruírem de um mundo melhor, com justiça e igualdade de direitos.
Graça Machel já dizia: “O negro e o branco nascem iguais, homem e mulher nascem iguais e, quando chega o fim da vida, morrem iguais. O mundo que nossa geração quer deixar para a de vocês é um mundo de iguais, e não de integrados.” Que possamos acreditar nisso!
Referências:
- Lang, Jack. Nelson Mandela: Uma Lição de Vida, Editora Mundo Editorial, 2007.
- Mandela, Nelson. A Long Walk To Freedom, Editora Abacus, 1995.
- Tannus, Lara. Fim do Apartheid na África do Sul, 2018, https://www.fflch.usp.br/433 , acesso em 15 de março de 2021.
- Gallas, Luciano. O ordenamento jurídico do Apartheid, 2013, http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5338-sanele-sibanda , acesso em 15 de março de 2021.
- Sousa, Rainier Gonçalves. Apartheid, https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/apartheid.htm , acesso em 14 de março de 2021.
- Massuelo, Amanda. Graça Machel: O tesouro de todos os tesouros é a educação, Graça Machel: O tesouro de todos os tesouros é a educação, Graça Machel: O tesouro de todos os tesouros é a educação (uol.com.br), acesso em 16 de março de 2021.
Perfeita as considerações colocadas no texto!