Foram os dois principais assuntos abordados durante o talk show ‘Trabalhar para Acabar com as Diferenças’, que encerrou o Plugar Igualdade Racial, no último 24 de outubro, em São Paulo
O sistema de cotas como correção de injustiças históricas e o dever das empresas de trabalharem pela diversidade e inclusão em seus quadros de colaboradores estiveram entre os assuntos abordados durante o talk show “Trabalhar para Acabar com as Diferenças”, que encerrou a programação do Plugar Igualdade Racial, promovido no último dia 24 de outubro pelo Grupo Mulheres do Brasil, no auditório do 4º andar da Torre Santander, em São Paulo.
Como nas edições anteriores do Plugar, a presidente do Grupo do Mulheres do Brasil, Luiza Helena Trajano, foi a mediadora do talk show, que contou com a participação do vice-presidente do banco JP Morgan Chase, Gilberto Costa, da subsecretária de Empreendedorismo de Pequenas e Médias Empresas do Estado de São Paulo, Jandaraci Araújo, e da advogada e procuradora da Advocacia Geral da União, Indira Ernesto Silva Quaresma.
O primeiro a falar foi Gilberto Costa, que representa o Grupo de Diversidade Racial do JP Morgan no Brasil e atua no Subcomitê de Diversidade da Febraban (Federação Brasileira de Bancos). Ele falou da importância das empresas e instituições liderarem e darem exemplos quando se trata de diversidade e igualdade racial. “Como grupo empresarial e como empresas, temos que dar o exemplo das ações afirmativas de inclusão de meninas e meninos negros no mercado de trabalho, que são importantíssimas. Sem isso não vai mudar esse ponteiro”, declarou.
Para ele, convencer as pessoas e fazer um trabalho de educação também é um dever das grandes corporações. “A cabeça das pessoas não vai mudar de um estalo, de hoje para amanhã. A questão de viés inconsciente, uma expressão linda e maravilhosa que todo mundo fala hoje em dia, já existe há anos. Cabe a nós, empresas, quebrar esse viés inconsciente para lutar contra o preconceito”, acrescentou.
Segundo Costa, para fazer com que as pessoas mudem suas realidades, as empresas têm que se unir e trabalhar junto com o Estado, com Ministério Público do Trabalho e todos os segmentos empresariais e grupos organizados da sociedade, com o objetivo de forjar empregabilidade e oportunidades à população negra. E não basta apenas colocá-los dentro das empresas. “Não adianta encher a empresa de cara preta. Vai ficar bonito no Linkedin e no Facebook, mas não vai resolver o problema. Vai resolver quando o grupo empresarial ou a empresa ajudar no encarreiramento dessas pessoas. Se nós não prestarmos atenção no encarreiramento das meninas e mulheres negras, daqui a um tempo não vai ter mais referência para os jovens”, frisou.
Luiza Helena concordou que o papel da empresa é importantíssimo para “furar nuvens” e contou que o Magazine Luiza passou a adotar testes cegos para seleção de trainees. “Você não sabe quem é, onde estudou, nem o que faz. Porque você contrata pela capacidade técnica, mas manda embora pelo comportamento. E [para avaliar] comportamento não pode olhar de que cor é a pessoa e nem de onde veio”, comentou a executiva que é também presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza.
Desafios
Participante dos comitês de Igualdade Racial e de Combate à Violência Contra a Mulher do Grupo, a subsecretária de Empreendedorismo de Pequenas e Médias Empresas do Estado de São Paulo, Jandaraci Araújo, falou sobre ser mulher e negra dentro do poder público e em uma área dominada por homens. Para ela, está sendo muito mais uma questão de posicionamento. “Tem sido uma experiência reveladora. Tenho tido experiências não muito agradáveis e outras que me dão esperança”, diz.
No exercício de sua função pública, Janda (como é mais conhecida no Grupo) conta que, em muitos eventos oficiais, tem que substituir ou representar a secretária ou o governador do Estado – em alguns tem que pedir o microfone para poder falar os cinco minutos a que tem direito; em outros, sequer é cumprimentada. “Depois que me anunciam como subsecretária, tentam corrigir: ‘nossa, não te cumprimentei’”, descreveu.
Ela foi aplaudida ao dizer que não deixa a falta de educação do outro ditar seu comportamento ou tirá-la de seu lugar de representatividade. “Esse lugar foi conquistado. Não é a Jandaraci que está ali, é um navio negreiro inteiro e todas as mulheres – porque somos poucas também nesse ambiente”, declarou. Até porque, lembrou ela, na área pública, os negros e negras têm que “hackear” o sistema. “Mas eu só posso hackear o que eu conheço. Então, se nós, negros, não estivermos inseridos no sistema, nós não conseguiremos virar o jogo e entender como fazer para mudar a forma como ele está operando hoje. Porque isso é um sistema, e um sistema cruel. Nós temos que ‘hackeá-lo’”, acrescentou.
Janda lembrou que tudo é muito recente na história da cultura negra no Brasil e não se muda um sistema passados apenas 131 anos de abolição da escravatura. Exatamente por isso não se deve cruzar os braços. “A gente tem que mudar toda uma cultura. Vai levar tempo”, arrematou.
Cotas
A procuradora e advogada Indira Ernesto Silva Quaresma relatou, em sua fala no talk show, como foi defender, no Supremo Tribunal Federal, o sistema de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB). O tema também é defendido por Luiza Helena Trajano, que havia aberto a noite falando a respeito. “Convenço todo mundo sobre a validade das cotas em cinco minutos. É um processo transitório para compensar uma desigualdade”, disse a empresária, que também contou ter instituído cota para negros na seleção de trainees do Magazine Luiza.
Brasiliense da gema, Indira conta ter integrado a estatística de 2% de alunos negros na UnB antes de a universidade adotar o sistema de cotas, em 2004. Com 24 anos tornou-se procuradora na Advocacia Geral da União e, em 2009, recebeu a gigantesca incumbência de defender a UnB na questão da manutenção de cotas raciais. “De 63 procuradores na AGU eu era a única procuradora negra. Foi um dos momentos mais devastadores da minha vida”, narrou.
Indira, então, estudou desesperadamente para dar conta do desafio, começando pelo plano que um sociólogo da UnB elaborou para explicar a necessidade das cotas. Ao longo dos três anos de espera pelo julgamento da ação, ela assistiu aos advogados oponentes irem a vários programas de televisão para dizer que, no Brasil, não existia racismo, que o negro tem todas as oportunidades por aqui e que o problema do País era social.
“Enquanto está só você e o processo, você se sente muito sozinha. Então um dia me chamaram pra uma reunião e começaram a abrir as janelinhas dos movimentos negros. Pensei: ‘meu Deus, é a vida de 50% da população brasileira que está em minhas mãos’”. Quando, finalmente, foi marcada a data do julgamento, três anos após a entrada da ação, Indira passou três meses ensaiando sua sustentação oral.
No dia do julgamento, representantes da população negra compareceram em peso ao Supremo Tribunal Federal. Até o cineasta norte-americano Spike Lee, que trabalhava em um documentário sobre o assunto, estava na plateia. Foi instalado um telão do lado de fora. “Foi, talvez, o momento mais importante da minha vida, como pessoa, como cidadã, como advogada, como mulher e como negra. Em determinado momento eu me incluo no discurso… acho que foi o momento mais marcante, em que eu falo ‘nós, negros…’”, recordou.
Ao final, o STF concluiu que cota para negros não é favor. “Cota racial é direito. Direito a uma igualdade viva, vivificante e material. Porque não basta dizer que são todos iguais perante a lei se as condições não são iguais. (…) Eu preciso igualar as linhas de partida, senão não posso cobrar que na chegada todos sejam iguais”, reproduziu Indira no talk show.
Em 15 anos de sistema de cotas, a UnB elevou seus 2% de estudantes negros a quase 20%. “A gente não tem ideia do valor que um diploma de uma universidade pública federal pode ter na vida de uma pessoa. Eu sou um exemplo disso. Eu experimentei uma ascensão social por conta de um diploma de Direito de uma Universidade de Brasília que eu nunca teria experimentado na minha vida se eu não tivesse estudado lá”, conclui Indira, que ainda caminha praticamente sozinha, como negra, pelos corredores do STF. Continua vendo homens e mulheres brancos, mas mulheres negras está difícil.
Fechamento
Instigados por Luiza, os participantes opinaram sobre como todos podem contribuir para que cada vez mais negros tenham acesso a direitos e oportunidades. Janda considera que o trabalho já começou, mas ainda há muito o que se falar, discutir e internalizar a respeito. Acha que falta um processo educacional para todos, que passa por educar nossos filhos para a igualdade. “O viés que a gente tanto fala é a questão cultural, que se aprende em casa. É fato que, se a criança não convive com outras crianças negras, se as únicas pessoas negras que ela vê são a faxineira ou o segurança do shopping, se o ambiente diverso não é uma coisa normal para ela, vai crescer continuando a achar que é diferente e está numa situação de privilégio”, concluiu.
Indira concordou que uma mudança de entendimento começa dentro da casa de cada um, nas famílias. “Tem que trabalhar o respeito ao outro, o sentimento de fraternidade. “isso repercute na sociedade”, disse ela, acrescentando que o Brasil tem quatro problemas sérios: pobreza, desigualdade, sexismo e racismo. “Se trabalhássemos todos esses vieses pelo princípio da fraternidade – e a gente pode fazer isso nas mínimas coisas, ensinando nossos filhos a compartilhar e respeitar o filho da faxineira –, a sociedade pode mudar”, acrescentou.
Luiza fez o fechamento anunciando uma das ações institucionais resultantes da reunião ocorrida na parte da manhã, com os Núcleos, no Plugar Igualdade Racial. “Vamos montar um banco de dados de profissionais negras brasileiras cargos gerenciais. A gente quer ver, em dois anos, muito mais mulheres em cargos de chefia. Porque ouve-se muito das empresas que elas procuraram e não acharam mulheres negras para contratar. Agora procurem no Grupo Mulheres do Brasil que vão achar”, desafiou.
Ao final, Luiza convidou todos os participantes, auditório lotado, com cerca de 500 pessoas, a comemorar os 6 anos do Grupo Mulheres do Brasil, que hoje já soma mais de 35 mil integrantes. A comemoração foi abrilhantada pela jovem cantora Fanieh, que apresentou um tributo a Martin Luther King.
*Por Sílvia Pereira
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